segunda-feira, dezembro 18, 2006

Fernando Pessoa

Excerto de uma carta de Fernando Pessoa dirigida a Adolfo Casais Monteiro, sobre a origem dos seus heterónimos. Publicada na revista «Presença», n.º 49, Junho, 1937.

Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m. de altura, mais 2 cm. do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada, todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.

Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de Jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o «Opiário». Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?...

Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de «ténue» à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoalvelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).”

3 comentários:

Cris disse...

Falar de Pessoa é muito suspeito, atrevo-me a gostar, e a degustar cada palavra. Não sou digna de o comentar.

Cris

Femané disse...

cris>
É o fascínio pela mente humana…
E Pessoa é mestre em nos demonstrar isso.

Ana Citadin Johann disse...

Concordo inteiramente com "Cris"!!!
Verdade mesmo Cris!
Fernando Pessoa não dá espeços pra comentários... uhum....

Beijokas mil queridos!

Caro amigo Femané, você, sempre atual e culto! Parabéns!